Há investigadores de Vagos a contribuir – e muito! – para a evolução da ciência a nível nacional e global. Mariana Sofia Pandeirada tem uma costela vaguense, foi atleta do Grecas e faz parte da Direção da Associação Charcos & Companhia para além de ainda ser investigadora e aluna de doutoramento na Universidade de Aveiro. Para além de prémios do mundo científico, a jovem também já deu 5 novas espécies à ciência.
Quem é a Mariana Pandeirada e o que faz?
A Mariana é uma pessoa que nasceu na Venezuela porque os meus pais foram lá emigrantes. E foi engraçado porque eu costumo dizer que já nasci com uma luzinha virada para a ciência porque a minha mãe não podia ter filhos e fez tratamentos durante uns 9 anos… Foram 9 anos de tentativas até eu nascer, portanto, tenho de agradecer à ciência senão eu não estaria aqui. Estive lá 2 anos e os meus pais vieram para Portugal, o meu pai para a construção civil e a minha mãe foi doméstica. Mais tarde a minha irmã (Carolina Pandeirada, também atleta do Grecas) nasceu e crescemos por cá, no campo. Penso que isso estimulou também o meu contacto com a natureza.
Vieram logo para Nariz?
Sim, de onde é a minha mãe. Eu digo que não sou uma pura vaguense mas a minha família por parte do meu pai compreende uma população interessante em Vagos: Santo António, Lameiro, Lombomeão… Fizemos a escola em Oliveirinha, depois para Aveiro onde fiz o secundário na área das ciências e depois fui para a universidade de Aveiro.
Engraçado que eu pergunto quem é a Mariana Pandeirada mas o discurso foge logo para a ciência.
Porque aquilo que eu sou está muito ligado ao que fazemos. Mas sim… se calhar é mais fácil dizer-te a idade e outras coisas. Tenho 31 anos e depois de estudar na Mário Sacramento (Aveiro), não sabia bem o que queria. Gostava de ciências e queria ficar por Aveiro para ficar perto. Então, candidatei-me a Biologia, Ciências Biomédicas, Química, Física… tudo ligado à ciência. Acabei por entrar em Biologia mas se me perguntares se eu já sabia o que queria… não, não sabia porque gostava de muita coisa. Acabei por me fascinar por microalgas, na cadeira de biodiversidade. Tive essa cadeira, puseram-me uma amostra num microscópio e eu comecei a ver umas bolitas a andar de um lado para o outro, formas diferentes… eu lembro-me de pensar que era fascinante.
Foi esse o clique?
Sim, foi algo que… eu não conhecia aquilo. Que mundo era aquele? Eu já tinha ouvido falar mas quando tive efetivamente contacto, o impacto foi diferente. Isso criou um bichinho dentro de mim. E também adorei o professor… que é neste momento o meu orientador, o prof. António Calado. Aquela pessoa e tudo aquilo que me estava a ser dado naquela cadeira… foi fantástico. Acabei por tirar 20, o que foi um pouco estranho porque era um “cadeirão” e isso causou impacto no curso. Chegou ali a uma fase em que tinha de acabar a licenciatura e fazer uma tese… e acabei, por vias travessas, de ir falar com uma professora e, quando estava a falar com ela, disse o meu nome. Ele levantou-se, tirou um monte de papéis e disse «então a menina tira 20 à cadeira e nunca mais aparece?» e eu disse que não sabia que era suposto aparecer [risos]. Falámos um pouco sobre a possibilidade de fazer um pouco de investigação voluntária com o intuito de aprender. Eu fui, no segundo ano de biologia, à procura disso. No final desse ano falámos e propusemos fazer uma pesquisa dentro das microalgas mas para um grupo mais restrito que são os dinoflagelados.
Dinoflagelados?
Têm comportamentos fotossintéticos mas depois têm organismos que são predadores, outros que fazem as duas coisas… são muito importantes em termos ecológicos. A tese a que nos propusemos foi fazer uma atualização dos grupos de dinoflagelados que existem em Portugal porque os estudos que existiam eram de 1950.
Esse mundo das microalgas não é algo muito explorado?
Tem sido explorado porque as microalgas são muito importantes como produtores primários. Mais de 50% da produção de oxigénio no planeta vem de recursos aquáticos. Na parte marinha tens as diatomáceas e depois os dinoflagelados. E só este grupinho contribui para mais de 50% da produção de oxigénio no mundo inteiro… dito desta forma já consegues imaginar o papel que estes pequeninos podem ter e que não passa para o público em geral.
Esse foi o primeiro grande trabalho, a primeira publicação?
Sim. E na altura foi muito importante, ao ponto de eu ser reconhecida como Jovem Cientista do Ano (2013) a fazer trabalho dentro de recursos aquáticos do continente, atribuído pelo Fluviário de Mora, do Alentejo. Foi um reconhecimento importante na altura… antes desse, participei no Congresso Ibérico de Microscopia e acabámos por arrecadar o 1.º prémio em fotografia que também foi muito engraçado. Foi um marco e uma motivação. Não acho que seja necessário ir à procura de prémios mas se o trabalho for reconhecido, tudo bem.
Foi com esse trabalho que percebeu que queria estar ligada à investigação?
Sim, posso dizer que ter conseguido publicar e ter sido reconhecida foi importante mas a parte fulcral é que gosto. Portanto, avancei para o mestrado e, na altura, já andávamos a trabalhar algumas espécies – que entretanto já tínhamos mencionado no trabalho – e que acabámos por estabelecê-las como espécies novas.
Fale-me disso. Cinco novas espécies para a ciência?
Olha… há coisas que ainda não estão descobertas. Uma delas surgiu até à porta da universidade onde há uns laguinhos muito próximos e onde costumamos colher, até para as aulas, algumas amostras. Foi engraçado porque toda a gente passa por lá e os laguinhos já são mais ou menos conhecidos… e na altura vimos um quisto de um dinoflagelado que não era comum. Fizemos uma pesquisa mais profunda na literatura e percebemos que aquele quisto não estava descrito.
Quisto?
É uma parede mais espessa que a microalga produz que lhe permite atravessar condições mais desfavoráveis. Acabámos por desenvolver o estudo do quisto, depois a própria microalga acabou por germinar dentro do quisto e possibilitou estudar tudo. Foi um trabalho onde descrevemos ciclo de vida, fase em que se produz o quisto… estudámos por microscopia ótica, microscopia eletrónica de alta resolução. Foi um trabalho muito completo e batizámos a microalga Tovellia Aveirensis.
Para fazer tudo isso é necessária tecnologia “de ponta”.
Daí existir uma colaboração com a universidade de Copenhaga. Neste artigo da Aveirensis estive eu, o prof. António Calado, a Sandra Craveiro, o Ojvind Moestrup e o Niels Daugbjerg. O Ojvind Moestrup já está reformado, foi orientador do António e da Sandra e possivelmente foi a pessoa, a nível mundial com maior currículo com que já trabalhei. Eles ajudaram na parte do microscópio de transmissão e na parte do DNA, de perceber com quem se agrupa: em que família, em que género…
Foi a primeira espécie que descobriu?
Foi a segunda. Antes desta houve outra, na Quinta da Boa Vista, na Vista Alegre. Existem lá, se não me engano, quatro lagos pequenos onde, ao longo dos anos, têm sido recolhidas amostras para as aulas. Houve um dinoflagelado que apareceu no fundo de uma amostra, parado… era redondinho e nós não estávamos à espera que fosse algo desconhecido para a ciência. Na altura eu era novata e estava tão fascinada que acabei por isolar este organismo. Ele acabou por crescer em cultura e por se dividir o suficiente para dar para estudar. Acabámos por perceber que também enquistava e que o quisto formava uma cobertura cristalina. E nós sabíamos que quistos calcários só existiam no grupo de dinoflagelados marinhos. E aquela estrutura tinha todo o ar de ser calcário… a partir disto, aprofundámos o estudo da espécie com microscopia e DNA e acabámos por perceber que estávamos na presença de uma espécie nova e um género novo, que ainda não tinha sido descrito.
Nós por aqui temos um ecossistema algo invulgar. É possível encontrar esta espécie noutro local do mundo?
Não posso dizer que não existem. Até porque outra das espécies que publicámos foi colhida aqui perto de minha casa, no ribeiro da palha, e, ao mesmo tempo, estava a ser descrita na Escócia. Não me perguntes como é que na altura chegámos à conclusão que estávamos a descrever a mesma coisa mas chegámos. Era de sítios diferentes mas era a mesma coisa.
Neste momento o que é que faz no doutoramento?
Não é ir tanto à procura de espécies novas mas de ver os grupos que foram estabelecidos, os géneros que foram estabelecidos com base em microscopia ótica – que era a principal arma de identificação – no século passado, e estamos a rever tudo isto. Porque percebemos que algumas espécies que foram consideradas como próximas, se calhar, não são assim tanto. Nós estamos a pegar nesses grupos que foram estabelecidos, a estudá-los com base no DNA e a olhar para a morfologia interna, e a tentar pôr ordem nas coisas.
No meio de toda esta investigação que aplicação é que podem ter no mundo?
Para além da fotossíntese que já te falei há bocado? Acho que temos um problema de achar que todo o conhecimento tem de ter uma aplicação. A verdade é que só a existência destes organismos é vital para a nossa vida portanto tem todo o nosso interesse, independentemente de questões económicas. Mas se me perguntares ao nível de aplicações para o dia-a-dia… aplicações na área da cosmética, na área de filtros solares como os protetores.
Como surge a sua ligação ao Grecas quando há outros clubes aqui á volta ou mais perto?
Surgiu num casamento de uma prima minha. O Fernando Capela olhou para mim e para a minha irmã – eu, na altura, tinha 17 anos… já entrei um bocado tarde para o atletismo – e perguntou o que é que estávamos a fazer em casa porque podíamos dar boas atletas devido ao nosso porte físico. Na semana seguinte apareceu lá em casa dos meus pais, lançou o desafio e acabámos por ir. Ainda lá andei muitos anos porque cheguei ao doutoramento e ainda era atleta – e depois ainda representei a universidade de Aveiro.
Como se conjuga a parte da investigação com o desporto federado?
E este desporto tem a particularidade da época de competição coincidir com a época de exames na universidade. Era uma ginástica importante ao nível de planeamento que foi muito interessante. Eu tinha de planear o meu calendário de estudos tendo em conta os treinos e depois tendo em conta os exames. Ou seja, eu sabia que ia ter exame na segunda-feira mas no fim-de-semana ia para Lisboa porque havia o Campeonato Nacional lá. Portanto, tinha de preparar o meu estudo já a contar com isso. Mas deu para conjugar bem, para acabar a licenciatura com 17 e o mestrado com 18. Acho que há tempo para tudo… e depois chegou a uma altura em que teve de haver uma escolha porque já requeria uma ginástica que não era benéfica para a parte profissional. Mas não larguei o desporto, continuo a dar as minhas corridas. Trabalhar com a cabeça nem sempre é fácil e o desporto é um bálsamo.
E a Charcos como surge?
A Charcos surge na Mata do Bussaco, num curso de Botânica que foi lecionado pela curadora do herbário da Universidade de Aveiro. Eu sou bióloga mas com curiosidade pelas diversas áreas – e gosto muito da parte da botânica. Na altura fui fazer o curso, conheci o Pedro Mónica (presidente da Associação Charcos & Companhia) que não tem formação mas é um amante da natureza e acabámos por nos chegar muito durante o curso. Ele falou-me da Charcos, acabei por ir a algumas atividades até que surgiu o convite para fazer parte da direção. Acabei por aceitar porque também gosto de ter contacto com pessoas que, não sendo formadas em áreas ligadas à natureza, têm muito conhecimento. A Charcos tem sido muito boa nesta vertente, dá-me oportunidade de ir ensinando mas também de receber de outras pessoas.
E também se enquadra nessa vontade de preservação do mundo.
Sim. Nós também não podemos culpar as pessoas quando as pessoas não sabem e é necessário haver uma aposta na educação ambiental. E também é muito importante para a própria formação de um cientista, porque eu sei que não posso ir para lá falar de um modo demasiado científico, tenho de saber explicar o conhecimento. Nessa associação há pessoas novas, velhas, pessoas com formação e sem formação… também me ajuda a desenvolver essa parte da comunicação.