20 anos, 20 livros - Maria Alice Sarabando escolhe 20 livros que marcaram os últimos 20 anos

“Quem lê muito acaba por ter muitas infiltrações”

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A sensibilidade é tal que, na memória e no coração de Maria Alice Sarabando, os livros são como seres vivos. Respiram. Tocam. Sensibilizam. Incomodam. Perduram. Diz-nos que de um pequeno junco se fazem infinitas histórias e, entre estas, há sempre algumas que se evidenciam das demais. A convite do jornal O Ponto, a escritora vaguense aceitou destacar 20 livros lançados nos últimos 20 anos.


Fez uma seleção dos livros…

Ai, o trabalho que vocês me deram [risos]. Eu em 20 anos não li só 20 livros… escolher 20 é muito difícil. E muitos dos livros de que gosto são livros antigos - apesar de um livro nunca ser antigo - mas um dos vossos critérios era ser publicado a partir de 2000 e eu estive de fazer essa seleção. E depois ainda houve outro problema porque eu não tenho todos os livros que li ou tenho mas não sei onde estão [risos].


Tem algum género preferido?

Optei por trazer apenas livros de ficção porque é o que gosto de ler. E depois sou uma leitora muito visceral, eu entro no livro e aquilo encanta-me, horroriza-me, ensina-me, comove-me, faz-me pensar, desafia-me, abre horizontes, tornam-se bons motivos de conversa… Uma vez vinha de Espanha, de comboio, à minha frente vinha um rapazinho e era quase inevitável que a conversa não se desse. Era um turco que tinha feito Erasmus no Porto e que vinha ver um jogo de futebol. O que é que me valeu para conversar com aquele rapaz? Eu tinha lido dois livros de autores turcos - um do Orhan Pamuk que até está nesta lista - e isso foi motivo de conversa. 


Define-se como uma leitora muito visceral. Porquê?

Por exemplo, acabei de ler “O Perfume” depois da meia noite e não dormi mais porque aquilo termina com uma cena de canibalismo nos arredores de Paris e isso remexeu comigo. Há livros que incomodam, que perturbam muito… eu indico aqui - é um livro antigo mas só foi publicado em Portugal em 2014, na efeméride da I Guerra Mundial - um livro do Jean Giono, que se chama “O Grande Rebanho”, que… faz doer. Se calhar, ainda bem.


Um livro tem de incomodar? É uma premissa para as suas escolhas?

Não, não tem de incomodar até porque é impossível saber isso antes de o lermos. Escolho por muitos critérios… por vezes é pelo autor e há um, agora, que eu leio sempre que lança um novo livro que é o João Pinto Coelho. Tem três livros publicados e qual deles o melhor? Mas qual deles o que mais incomoda… ele trabalhou na Polónia e vai buscar temas relacionados com os campos de concentração, com o nazismo. São tudo livros que uma pessoa não sai incólume de dentro deles. Outras vezes leio por sugestões de amigos. Outras vezes é pelo resumo que leio. Houve uma altura em que o critério era de autores de lugares onde eu nunca fui porque era uma maneira - enfim, o autor não tem de escrever sobre o seu ambiente - de conhecer a raiz através daquilo que era escrito. Li um autor ugandês, um autor martiniquenho, um autor da Malásia, um nigeriano… é uma forma de viajar, de conhecer coisas que não conhecemos. Por vezes não tenho referências para entrar na história mas alguma coisa há de ficar.


O que é que torna um livro marcante?

Ui… o que é que torna um livro marcante? Pode ser a história porque há histórias que são comoventes. Pode ser a maneira como a história está contada. Pode ser a escrita porque, por vezes, a história pode não ser grande coisa mas o trabalho sobre a linguagem é tão bom que uma pessoa tem mesmo de ler. Outras vezes é mesmo o que se aprende ao ler.


Fale-nos sobre essa lista que elaborou.

Fiz a lista por ordem alfabética para não haver aquela ideia de que um me impressionou mais do que outro. Comecei pelo “Eu hei de amar uma pedra”, do Lobo Antunes, que foi um desafio para mim porque só à terceira vez é que consegui passar da página 50 mas depois adorei o livro. A dificuldade era o estilo, a forma de escrita. Depois indico aqui o “Mongólia”, de Bernardo Carvalho, porque eu já lá estive e o livro soube-me como uma sobremesa, fez-me sentir imersa naquele lugar. Depois escolhi o “Texaco” do Patrick Chamoiseau, porque nunca tinha lido nada de um escritor da Martinica e está relacionado com a luta de um grupo de habitantes de uma certa zona onde a Texaco se estava a implantar e uma velha de 90 anos é que dá corpo a essa luta - e conseguem afastar a multinacional. Depois escolhi “Os loucos da Rua Mazur”, de João Pinto Coelho, que foi o primeiro que eu li mas podia ter sido outro qualquer. Do Mia Couto já li dezenas de livros e escolhi “A confissão da leoa” que é muito bom apesar de não ter muito do estilo que se atribui do Mia Couto. Aquela fala do caçador… caramba!

Depois escolhi “O violoncelo de Sarajevo”, de Steven Galloway, porque é uma história deliciosa que se passa na década de 90, na Sarajevo sitiada pelos sérvios. É a história do primeiro violoncelista da Orquestra Sinfónica de Sarajevo que se põe a tocar em destroços… primeiro num sítio onde morreram 22 pessoas que estavam na fila do pão e ele esteve ali 22 dias a tocar - todos os dias, à hora em que o morteiro lá caiu.++ Isto é tocante, não é? Depois o livro de Jean Giono, “O grande rebanho”, que se passa na I Guerra Mundial e… é daqueles que incomodam mesmo. Às tantas há uma cena em que há um porco às voltas com um bebé que está a devorar. Quer dizer… uma pessoa arrepia-se.


Temos de nos arrepiar.

Sim. Depois a Lídia Jorge que é uma autora de quem gosto muito, escolhi “Os memoráveis” mas podia ter escolhido outro qualquer. Do Valter Hugo Mãe escolhi o “Homens imprudentemente poéticos” que já é um livro muito bem trabalhado em termos de linguagem, muito sóbrio, e muito interessante. “O regresso do hooligan” do Norman Manea é uma autobiografia de um homem romeno que em criança esteve num campo de concentração e depois na adolescência esteve ligado à juventude hitleriana… ele não renega nada disso e é uma autobiografia muito bem escrita. Depois do João de Melo que é um autor de quem gosto muito escolhi o “Lugar caído no crepúsculo” que é um voltar àquelas coisas da igreja, do cristianismo, do sagrado… mas com muita crítica, com muito humor, o inferno começa na baixa de Lisboa em hora de ponta… muito interessante. Depois escolhi o “Quase tudo nada” do Arsénio Mota que é um livro quase desconhecido, biográfico, mas que me deixou rendida à boa escrita. Ele é daqui da Bairrada. Fiquei rendida à boa escrita dele, como ele se nomeia como personagem, autor, narrador… é o eu, tu e mim, tudo ao mesmo tempo. Outro livro a que também aderi muito foi o “Arquipélago” do Joel Neto que foi uma revelação para mim. Foi um… é um vulcão, é muito interessante. Há pouco tempo, da Isabel Rio Novo, li a “Rua de Paris em dia de chuva” que é algo muito pacato, muito suave, que fala de uma pessoa de hoje a dialogar com o autor de um quadro com um século.


E mais?

Temos “Os transparentes” do Ondjaki que se passa no urbano atual de Luanda. Gostei muito… depois incluí também “O meu nome é vermelho” do Orhan Pamuk que é interessantíssimo. O “Shantaram” do Gregory Davis Roberts que é também uma biografia mas que vai para além disso… é de um homem que foi um criminoso, que esteve preso, que fugiu de uma cadeia de alta segurança e andou a deambular pela Índia, pelo Paquistão, por todo o lado. Não foi um criminoso de matar mas esteve em tudo o que era negócio obscuro. E o livro foi escrito na prisão… e ele diz que a primeira versão do livro foi destruída pelos guardas, ele teve de voltar a escrever mais de 600 páginas. E que algumas das páginas do livro têm sangue das mãos dele, ou pelo frio ou por ter levado [pancada]. Portanto, os livros trazem-nos estas coisas que nos fazem ter uma compreensão muito grande da vida… Um livro que li muito recentemente é “O infinito num junco” da Irene Vallejo que é a história do livro, com uma grande erudição por trás. Depois escolhi “O Minotauro Global” do Yanis Varoufakis… é um livro de economia que foge das minhas leituras habituais mas que é muito interessante e que fala da prepotência da alta finança no fluir da vida dos mais pequenos, como nós. Por fim escolhi “O último cabalista de Lisboa” do Richard Zimler. E é isto… podia ter escolhido muitos outros e muitos tive pena de deixar de lado [risos].


Muitos deles são ficção.

Praticamente tudo, sim. Muitos deles com base autobiográfica ou com enquadramentos históricos.


Há quem diga que os livros são intemporais...

São.


Mas a minha questão é outra. Para o leitor, todo o livro tem o seu tempo e o seu lugar? Este livro lido pela Maria Alice de 20 anos teria o mesmo impacto?

Não, acho que nunca tem o mesmo impacto. Aliás, já me surpreendi várias vezes ao reler alguns livros. Agora, com 10 ou 20 anos de distância entendo livros de outra maneira. Quando li “A insustentável leveza do ser”, li aquilo num folgo. Agora, precisei de voltar a ler e entendo aquilo de uma outra maneira, portanto, o impacto não é o mesmo. Se calhar também há livros que lidos cedo de mais podem fazer estrago… não sei. Quando era miúda, tinha uns 12 anos, puseram-me na mão “Os mártires do Uganda” e eu tive pesadelos durante noites seguidas a imaginá-los envolvidos em palha e atirados a uma fogueira. Portanto, penso que o impacto não é o mesmo consoante a idade em que o livro é lido.


Olhando para essa lista… algum poderia ter tido menos impacto se fosse lido há 20 ou 30 anos?

Provavelmente alguns não me teriam marcado tanto e não os iria referir. Mas isso não quer dizer que as pessoas não se impressionam quando crianças, adultos ou já na velhice… Não ficamos insensíveis. Mas os efeitos são diferentes.


Dizem que somos aquilo que lemos. A sua escrita tem influência de que escritores?

Eu não lhe sei responder a isso. Quem lê muito acaba por ter muitas infiltrações. O meu medo é chegar a certas formulações e pensar que pode ser de alguém… enfim, influências diretas eu procuro não ter. Não vou escrever à maneira de um Mia Couto ou daqueles que têm um trabalho sobre a linguagem já muito próprio. A boa escrita entranha-se mas eu procuro que não haja influências diretas.


Qual é o livro, neste momento, que está na sua mesa de cabeceira?

Não está nenhum porque eu detesto ler na cama [risos] está em cima da mesa da cozinha, está bem? Estão vários. Mas aquele que estou mesmo a ler é de um escritor mexicano, Juan Rulfo, que escreveu muito, muito pouco, e a obra dele está toda num único livro. Escreveu muito pouco mas que teve uma influência enorme nestes escritores latino-americanos que nós nos habituámos a considerar. Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges… todos tinham uma adoração por este homem e não se percebe muito bem porquê. Ou melhor, percebe-se. Ainda só li um conto e ainda o estou a digerir mas é um portento. 


Quem é Maria Alice Sarabando?
Maria Alice Sarabando confessa alguma relutância em se considerar escritora. A’O Ponto indica até que nem sabe quantos livros já editou porque “algumas coisas eu nem os considero livros” mas a conta, segundo ela, ultrapassa meia dúzia. Maria Alice nasceu em 1952 em Lombomeão, lugar em que ainda hoje reside. Formou-se em Filosofia e foi professora de Filosofia, Estudos Sociais/História de Portugal e até de Português. “Pó na Ventania”, editado pela Palimage, é o seu trabalho mais recente.


20 anos e 20 livros marcantes
António Lobo Antunes Eu hei de amar uma pedra
Bernardo Carvalho Mongólia
Patrick Chamoiseau Texaco
João Pinto Coelho Os loucos da rua Mazur
Mia Couto A confissão da leoa
Steven Galloway O violoncelo de Sarajevo
Jean Giono O grande rebanho
Lídia Jorge Os memoráveis
Valter Hugo Mãe Homens imprudentemente poéticos
Norman Manea O regresso do Hooligan
João de Melo Lugar caído no crepúsculo
Arsénio Mota Quase tudo nada
Joel Neto Arquipélago
Isabel Rio Novo Rua de Paris em dia de chuva
Ondjaki Os transparentes
Orhan Pamuk O meu nome é vermelho
Gregory Davis Roberts Shantaram
Irene Vallejo O infinito num junco
Yanis Varoufakis O Minotauro global
Richard Zimler O último cabalista de Lisboa

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