Nascido em Vagos, foi na vila que começou a dar as primeiras pinceladas. Aprimorou o saber que escorreu entre gerações e, aos 20 anos, começou a procurar a própria identidade ao mesmo tempo que começava a “gritar” o seu nome dentro da cena artística portuguesa. Vagos tornou-se pequeno e o país também. Hoje, Fernando Gaspar é um nome ímpar e incontornável no mundo da pintura com quadros espalhados pelo mundo fora.
Quem é Fernando Gaspar?
Nasci a 10 de março de 1966, em Vagos. Mesmo em Vagos, mesmo no centro, em casa. Nasci mesmo ali, atrás do Palácio da Justiça que, na altura, ainda nem existia. Foi naquela avenida numa casa que entretanto foi demolida e onde agora há uma pastelaria.
Era a casa de família.
Sim. E uma coisa curiosa é que a casa tinha sido desenhada pelo Lúcio Vidal.
Nessa altura, as pessoas da vila tinham muita ligação à Vista Alegre. É daí que vem a influência do gosto pela pintura?
Acho que sim, de alguma forma sim. Na família eu tinha o meu avô materno e o meu pai eram operários e estavam ligados à pintura. Qualquer um deles, nas horas vagas, foi pintado óleos e aguarelas. Eu comecei a praticar com o meu pai e começámos a brincar os dois a esta coisa da pintura. E depois era estimulado porque ia ver exposições, ia conhecendo pintores que era sempre algo que ele fazia muita questão.
Ele também fazia exposições?
Sim, fazia. E ainda há peças, [eu e as minhas irmãs] ainda guardámos aí um espólio interessante.
O arte do pai passou para a arte do filho?
Não tem nada a ver com o que eu faço hoje. O trabalho do meu pai era essencialmente naturalista, pintura de cavalete. Ele pintava lugares, a ria, moliceiros. Eu, quando comecei a brincar a isto, também andei por aí porque é o mimetismo natural. Mas rapidamente me fui soltando, comecei a fazer paisagem mais urbana e já não há grandes registos disso. Eu comecei a encarar a pintura de uma forma que ele nunca conseguiu encarar por uma questão de circunstância porque, na altura em que comecei a pintar, já era possível considerar isto como um tipo de vida.
Quando se dá esse passo do mimetismo para algo mais identitário?
A partir do momento em que começo a expor, já começo a expor com alguma identidade. Eu expus a primeira vez com 20 anos e aí já me soltei relativamente. Ainda fiz umas 2 ou 3 exposições em Aveiro relativas a esta temática mas depois comecei a estar ligado a galerias em Lisboa e a rotura foi absoluta. E depois comecei também a trabalhar outras técnicas (inicialmente era aguarela) como o acrílico e o óleo e o corte também se deu por essa via, por mudar de sítio, porque as circunstâncias em que se trabalha também alteram o resultado da pintura. Eu notei muito isso quando deixei de trabalhar só em Portugal e comecei a trabalhar com galerias estrangeiras.
Porque exigiam?
O desafio é completamente diferente e ficas completamente à vontade para trabalhar coisas que não há hipótese de trabalhar aqui. Eu lembro-me de uma questão determinante quando comecei a trabalhar com os Estados Unidos que foi a questão dos tamanhos. Aquilo que, para mim, eram trabalhos grandes, para eles eram de pequeno formato. Isto deixou-me muito contente porque queria fazer peças grandes há muito tempo. O desafio é maior, é tudo maior. E isso faz-nos crescer. Mas depois também há formatos que têm a ver com o próprio autor, eu também tenho preferências. Gosto muito de quadros quadrados ou ao alto. Mas o importante a reter é isso, o percurso sofre solavancos muito em função dos desafios que nos são colocados. Fazer sempre um percurso em Vagos não é a mesma coisa que fazer numa cidade como Aveiro ou por aí fora.
Como foi essa primeira exposição?
De um impacto impressionante. A primeira vez em que uma pessoa vê os quadros pendurados numa galeria é uma coisa… Foi na Grave, em Aveiro, que é do José Sacramento.
Como é que se faz uma exposição com 20 anos?
Eu ía muito à galeria, visitava muitas exposições e, em conversa, perguntei se dava para pendurar algumas coisas. E deu. Foi ali entre a porta e a escada mas valeu [risos] como foi depois impactante ver o meu nome no jornal. Foi deslumbrante. E foi esse ânimo e essa ilusão que me levou a Lisboa para fazer o mesmo número de bater à porta das galerias e perguntar o que achavam do meu trabalho. Foi curioso porque vim de lá embora com os quadros todos, para casa [risos] fiz o meu papel. E acabou por ser benéfico porque houve um galerista que me disse para concorrer a um concurso de novos pintores. Eu concorri, saquei um prémio nesse concurso e aí comecei a ter visibilidade. Depois foi algo quase meteórico.
A aprendizagem foi sempre em casa ou houve aprendizagem pelo meio académico?
Formal, não. Os primeiros rudimentos foi com o meu pai e depois foi comigo próprio. Estamos sempre a aprender e depois estamos sempre a descobrir que há coisas que ainda não sabemos muito bem.
Até onde já chegaram os quadros do Fernando Gaspar?
Em exposição? Tenho relações contratuais com galerias e estão nos Estados Unidos, na Alemanha, na Suécia e em Inglaterra. Portugal já é algo residual, já representa menos de metade do trabalho que faço e exponho.
No oriente…
Já expus na China.
São exposições coletivas ou individuais?
Participo tanto numa coisa como noutra, o contrato só nos vincula à galeria e a galeria a nós. Depois a galeria tem um programa todos os anos, uma agenda… portanto, eu entro dependendo da agenda da galeria. Quando quero, quando posso, quando estou para aí virado, quando eles deixam… é um trabalho recíproco.
Individualmente qual é o número de exposições por ano?
Uma ou duas. Coletivo é sempre mais fácil porque trabalha-se dois ou três quadros… uma individual demora sempre mais de um ano a trabalhar. A exposição não é um conjunto de quadros pendurados, a exposição é uma espécie de um livro em que cada quadro é uma página. Estes trabalhos todos que vamos vendo fazem parte de uma série que começou em 2014, chamada “Terra Separada”. Há muitas exposições que foram feitas sob a égide desse tema e são todas diferentes, como são sempre diferentes as páginas e os capítulos do livro. Podemos usar esta metáfora para perceber um bocado de como estas coisas são. Geralmente os quadros estão sempre ligados uns aos outros e as exposições também estão ligadas umas às outras - por uma questão formal, pelo tamanho da tela, pelas cores… Eu entendo-me muito melhor a trabalhar assim porque faz parte de uma reflexão no tempo e as suas cambiantes. O tempo vai evoluindo e nós também.
Quando é que uma série chega ao fim?
Pois… não sei. Até já me aconteceu pensar que tinha acabado, começar outra série e sentir necessidade de regressar à anterior.
Estamos aqui a olhar para alguns discos… que tipo de música se ouve durante o processo criativo?
A música está sempre presente aqui no atelier e às vezes até há uma ideia romântica sobre o pintar, música clássica, jazz… eu ouço um pouco de tudo e escolho a música de acordo com o que vou fazer porque altera-nos o estado de espírito.
Que música se ouviu durante o processo criativo deste quadro (capa da edição 500 do jornal O Ponto)?
Por acaso ouvi jazz. Jazz muito contemporâneo, do Jakob Bro. Mas quando vocês chegaram já estava aqui a ouvir algo mais pop.
A hora do dia também tem influência?
Eu já fui muito mais noctívago. Agora sou um bocado regimental, sou muito previsível. Às 9 horas da manhã estou cá sempre mas tenho vindo a notar que as coisas começam a acontecer melhor ao final da tarde. E às vezes volto cá à noite e continuo. Não tenho condicionantes nesse processo.
E companhia?
Por norma, perturba. Sou um solitário, isto é um espaço de um só homem [risos]. Gosto de estar sozinho porque é um processo em que um gajo se vai encontrar a si próprio, em que se vai escavar coisas lá dentro. É um processo solitário, um bocado monástico, até.
Já existe algo nos quadros que permita a alguém dizer “isto é um Fernando Gaspar”?
Eu acho que sim. Embora não seja tão consciente como isso, é uma espécie de caligrafia. Quem escreve à mão, é identificável pela caligrafia e na pintura é a mesma coisa. Há uma série de gestos que ficam marcados. Não é só a forma como aplico tinta com o pincel como depois os próprios temas e as cores. Sim, acho que há uma identidade clara nos meus trabalhos. Os fundos são, na maior parte dos casos, muito negros, há linhas matemáticas que acontecem com muita frequência, os escorridos que advém muito do gestual… é um elemento distintivo, que me identifica.
Quem são as suas influências?
Há muitos. E muitos vão entrando e outros vão saindo porque o meu trabalho também já sofreu uma evolução muito grande. E às vezes é difícil identificar quem são porque acho que nos vamos influenciando por pequenas coisas. Falando no cenário português, quem mais influenciou foi o Fernando Lanhas, muito mais matemático, e o Júlio Pomar, mais gestual. Depois há o Robert Motherwell… e podia enumerar outros, até porque já são 36 anos de carreira. Uns entram, outros saem e vamos admirando de formas diferentes em tempos diferentes.