Opinião de Paulo Pereira
No antigo Egipto, Ra, conhecido como Deus do sol, era venerado, tendo-se tornado uma das principais divindades da religião egípcia, o cerne de um culto transcendente.
Portugal entrou neste Euro como em qualquer um dos grandes eventos futebolísticos das últimas duas décadas: potencial favorito. As expectativas, que mal couberam no porão do Boeing que transportou a equipa das quinas, tiveram um duro contacto com a realidade. Não jogamos sozinhos. Há outros projectos futebolísticos que, pontuados também por jogadores de elevada craveira, adoptaram uma filosofia própria, uma identidade distinta. Portugal continua bafiento, preso aos pilares que cercearam a liberdade de outrora, o “fado, futebol e Fátima” a terem uma roupagem nova. Mas continuando perenes. Num país obcecado por futebol e crente em cultos, mantivemos a veneração sobre o nosso Ra.
Ronaldo, antes jogador, sofreu uma metamorfose, transformando-se em ícone mundial, marca global e, finalmente, messiânico. Adorado, uma versão moderna e encantada da aparição aos pastorinhos, sobredimensionou-se. A Selecção era ele. Ele era a Selecção. Neste dogma, mantido por receio, interesse, conformismo ou fidelização canina, todos se tornaram reféns e, ao mesmo tempo, cúmplices. A Federação manteve o status quo, limitando-se a uma operação de cosmética na escolha do seleccionador. Este, formatado em crente na madraça lusa, tornou-se um mero gestor de recursos humanos. E os companheiros, enfadados ou, por própria opção, confortáveis em papéis secundários, emularam os apóstolos em redor de Jesus. O resultado desta pantomina nem foi mau de todo, se tivermos as esperanças circuncisadas. Perdemos, sem glória mas com honra, nos quartos-de-final, contra a habitual “besta negra”, uma França mediana que se revelou mais certeira na marcação das penalidades. O grande problema é que este Euro, por ironia ou lição do destino, colocou-nos em frente a um espelho virtual, mostrando-se o que somos e o que poderíamos ser. O que somos está descrito acima. Uma equipa repleta de talento, a um passo de ser lendária, magnífica nos seus equipamentos, mas padecendo da tacanhez de alimentar egos. Na imagem reflectida, nesse espelho virtual, aparece o desejo de todos nós, a versão alternativa do que poderíamos ser, se existisse um multiverso, uma realidade paralela. Uma equipa que soube romper com o passado, com o jogo de posse, o tiki-taka desorientador, à medida que as suas estrelas empalideciam, optando por seguir outro caminho, aproveitando as características dos seus jogadores. Um futebol rectilíneo, mas envolvente, um ataque vertical, mas criativo, sempre assente numa premissa que se tornou o mantra: joga o talento. Do lado de cá, na versão real, Portugal interroga-se. Do lado de cá, escalona-se um onze baseado no prestígio. Na imagem invertida, quase que nos reconciliamos com o futebol de rua. Há alegria, explosividade, emoção, equilíbrio e espaço para a criatividade dos génios. Mesmo que estes, ainda não incensados em altares mediáticos, tenham apenas 16 anos. A sátira é que isto, que podíamos ser nós, existe, mas do outro lado da fronteira.
Nuestros hermanos, sem necessidade de “limpar balneários”, souberam encontrar a fórmula para enfrentar uma grande competição. Um técnico anónimo, sem preconceitos, ignorando a opinião pública, a pressão de clubes, a intimidação velada de empresários, aglutinando em seu redor uma alma renovada, mas sem precisar de exorcizar os veteranos. Saibamos aprender a lição de pragmatismo, para não continuarmos a desbaratar sucessivas gerações de potenciais vencedores.
Heróis do Mar, até à próxima desilusão!