Quando Pierre de Coubertin, um historiador cujo único feito desportivo relevante foi deter o recorde de folhear mais rapidamente um calhamaço de 1240 páginas sobre a história do Antigo Egipto, derrotando na final um pomposo académico inglês, criou os Jogos Olímpicos da era moderna, estaria longe de imaginar a repercussão mediática que os mesmos teriam, nas décadas seguintes. Se os ideais eram quase pueris, ingénuos e baseados em conceitos de fraternidade e igualdade entre os povos, o crescimento exponencial da competição e a sua popularidade mundial vieram subverter “ligeiramente” essa quimera. Sim, continuam a existir competições de sadia rivalidade, ressuscitando o “Citius, Altius, Fortius”, lema criado em 1924, mas agora levado a um extremo que transforma os atletas em verdadeiras pop stars de consumo imediato.
Numa era marcada pelas redes sociais e onde a tecnologia está presente em cada acto praticado pelo comum mortal, a cerimónia de abertura dos Jogos deste ano, realizados em Paris, tornou-se difícil de replicar. E explicar, por palavras. Foi uma caldeirada de emoções, ora colocando-nos num mundo onírico, com hologramas a passearem sobre as águas poluídas do Sena, ora deslumbrando, com um jogo de luzes caleidoscópicas que entonteciam os sentidos, deixando lugar para a surpresa. Eu, penitente, sempre tive um interesse residual por este tipo de cerimónias, mas fiquei agarrado ao ecrã, boca aberta de espanto, parecendo que estava dentro de um blockbuster de Hollywood, com explosões, luzes e cenas que duelavam com as de um filme estrelado por Tom Cruise. Foi épico, memorável e controverso, não necessariamente por esta ordem. Num mundo onde o politicamente correto se tornou o novo deus, brincar com a representação da última ceia, com tipos vestidos de estrumfes, é capaz de ter sido ligeiramente avançado para os dias – e mentes – atuais. A parte da pantomina, para surpresa minha, não terminou ali, na polémica. Snoop Dogg, nome artístico sobejamente conhecido na América, mas um quase desconhecido na Europa com neurónios, transformou-se um porta-estandarte não oficial dos USA. O rapper, cujos méritos discutíveis envolvem o consumo de substâncias ilícitas, teve o seu quinhão de fama, portador da flama e ajudando a perceber que, hoje em dia, tudo é possível. E é por isso que adoro acompanhar os Jogos. De preferência, com pipocas. Consumo tudo o que mexe, desde patinagem em pista, natação sincronizada, saltos de cavalete, tiro com arco e se existisse uma prova de tinta a secar uma parede em também veria. A competição é isto. Uma promoção de valores, de integração cultural, de amizade e respeito. Destaco dois desses momentos:
Judo. Combate entre um moço de nome esquisito do Turquemenistão, país também de nome esquisito, contra outro moço, de Israel. O moço do país que não era Israel recusou o aperto de mão do adversário, lançou-lhe um olhar fulminante, gritou injúrias numa língua felizmente sem tradução e um minuto após o início do combate contorcia-se no chão, choramingando como os bullies de liceu, com um ombro deslocado.
Esgrima. Luta pela medalha de bronze. A atleta que a venceu, de joelhos, prostrada de emoção, dedica o triunfo. Ela, Olga Kharlan, teve a frase mais poderosa de todas as frases poderosas: “´Dedico esta medalha a todos os atletas ucranianos que não puderam estar presentes, porque a Rússia assassinou-os”.
Na parte que nos interessa, com o orgulho nacional chamado à liça, parabéns. E parabéns sem ponta de ironia. Com medalhas, mas podia ser sem elas, nunca criticaria atletas de modalidades olímpicas que treinam exaustivamente, sem apoios, ou com alguns precários, com o fito de representarem o País, que ironicamente os ignora até essa altura, com a sua obsessão pelo futebol, o aglutinador de todas as atenções. As vitórias não aparecem por acaso. É preciso investimento, força de vontade, trabalho árduo. E tempo. Há 15 anos Portugal gastou 10 milhões num velódromo. Os resultados apareceram agora, em prata e ouro.
Autor: Paulo Pereira