Partilhar:

Está a chegar a famigerada semana da Jornada Mundial da Juventude e de todo o folclore que a mesma acarreta. Assim que Lisboa foi anunciada como cidade anfitriã do evento, a histeria multiplicou-se de tal maneira que era previsível que chegássemos a esta altura e nos esquecêssemos do compromisso no que à laicização do Estado diz respeito. A megalomania obtusa do palco erguido para a ocasião, assim como dos custos que o envolve, foi o primeiro sinal de que os meses seguintes, mormente em Lisboa, iriam ser vividos de e para a Jornada Mundial da Juventude. Depois, a procura angustiante por voluntários que, para laborar em nome do Messias e da Virgem, tiveram de desembolsar centenas de euros para cumprir o sonho de ver e escutar o Papa a dizer as coisas que os papas costumam dizer: a paz, o fim das guerras e da fome, a solidariedade, essas coisas. Em contrapartida, aos voluntários é-lhes oferecida uma glamorosa mochila, um terço e um pacote individual de bolachas Maria para serem molhadas na água a que, diariamente, têm direito (diariamente, pasme-se!). Mas há mais: casas, quartos e, até, garagens e arrecadações para arrendar, cujo valor solicitado daria, de boa fé, para adquirir seis ou sete malas Louis Vuitton ou parte da luxuosa sapateira da Barbie que em nada difere da pomposa sapateira comum situada na marquise do Vaticano. E do Vaticano – que, a par de Fátima, nada, nadinha, lucram com a cegueira de uma percentagem dos fiéis – pouco vem. Aliás, de lá vêm o Papa e a sua interminável comitiva, comodamente instalados em quartos a roçar o de Luís XIV. E com direito a Netflix, cerejas do Fundão, tortas de mirtilo, barras proteicas de abacate e uma barrica de ovos moles confeccionados por uma vizinha minha altamente católica e obscenamente conservadora, aqui no bairro das Barrocas, Aveiro. 

Aos fiéis espalhados pela Área Metropolitana de Lisboa pede-se, encarecidamente, para serem compreensíveis e benevolentes (exactamente como a Igreja Católica tem sido nos últimos anos em relação aos padres, sacerdotes e similares, especialmente no que toca às brincadeiras de cariz duvidoso que estes mantêm com catraios de tenra idade) e ajudem a acolher peregrinos vindos do estrangeiro, através do programa “Família de Acolhimento”. Mas levanta-se um problema que pode ser expandido a outros do género: como é que um fiel religioso de Almeirim conseguirá escovar os dentes na mesma casa de banho em que, minutos antes, um adolescente borbulhoso indonésio esteve a defecar? Nesse momento, os astros desalinham-se e a simbiose sonhada torna-se um mero pesadelo de dias, como aquele que a malta de Lisboa que tem de trabalhar durante esse período vai ter de enfrentar por causa de mais de um milhão de pessoas, sobretudo jovens, que assim que virem um charro a ser rodado entre as paredes grafitadas do Bairro Alto terão um colapso mental e ver-se-ão invadidos por pensamentos que não lembram ao diabo. Literalmente.

E dos muitos diabos eclesiásticos são provenientes a obscuridão e o silêncio ensurdecedor no que aos infinitos abusos sexuais dizem respeito. O sintoma de impunidade vigora. A religião continua a ser um fortíssimo lobbie: move mentalidades e abafa tudo aquilo de negativo e horrendo que a mesma, à partida, faz por esquecer. A Justiça colabora, mostrando-se impávida e moribunda. Aqui e acolá, uma ou outra voz levanta-se, prontamente calada e/ou ignorada. Fora da Jornada Mundial da Omissão do Abuso Sexual, há um medo patente que toma conta de parte dos fiéis: parece infame e blasfémia tocar no assunto dos abusos sexuais, com um medo evidente de terem o Inferno à sua espera. Dentro da Jornada Mundial da Omissão do Abuso Sexual, o receio ainda é maior e a Santa Inquisição parece estar por todo o lado, em todas as esquinas, e até no backstage daquele singelo palco que custou milhões aos portugueses, mesmo àqueles que anseiam há anos por um médico de família, uma consulta no hospital, um singelo tecto ou um ordenado digno que lhes permita, entre outras mordomias, comer um ovo mole de vez em quando. 

Pedro Nuno Marques

Colaborador

Ler Mais