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Reza uma história muito antiga que as mulheres, antes de serem mulheres, eram árvores e como tal, tinham raízes que as tornavam unas com a terra, tinham braços largos e casacos feitos de troncos, com longos cabelos que se cobriam de folhas, de frutos e de aves. Nutriam-se de sol, de água e de vento e jamais estavam sozinhas pois comunicavam numa rede profunda com outras árvores.  Eram assim as mulheres da minha aldeia.

De acordo com Gabriel García Márquez, “os seres humanos não nascem para sempre no dia em que as mães os dão à luz, e sim, que a vida os obriga outra vez e muitas vezes a se parirem a si mesmos”. Será possível articular o tempo das batidas do coração e o tempo dos ponteiros do relógio?

Dizem-nos, ao longo da vida, que para sermos felizes devemos olhar em frente. Projetar o futuro, planear e trabalhar no sentido de alcançar aquilo a que nos propomos, no entanto, olhar para trás ajuda-nos a compreender o que nos edifica. A vida tem sentido, tratando-se de identidade cultural, quando conhecemos nossas raízes, de onde viemos, quem somos e como somos. É preciso conhecer o passado para entendermos as mudanças culturais que ocorrem no presente e que ocorrerão no futuro.

As lembranças mais remotas que tenho são de sons e cheiros. Galos, garnisés anunciavam o nascer do sol, a peixeira e o azeiteiro avisavam a sua presença com sonoridade! Os cheiros a mosto, leite acabado de ordenhar, palha seca na cabana, a erva molhada, das flores suadas de orvalho, permeiam-me a memória fazendo entrar no palco iluminado a infância sensorial.

Os sábados solarengos de verão da minha Infância cheiravam a sabonete azul, lixivia e roupa lavada; as janelas eram abertas de par em par para deixar o sol entrar devagar. O chão lavado com aroma de pinho contrastava com o cheiro de estufado que emanava da panela. Depois da sesta, chegavam familiares e vizinhos para uma roda de prosa onde se descascavam feijões e ervilhas à sombra de alguma árvore, ao fim do dia, era certo eu ter que regar os tomates ou o milho. Se o calor apertava, um banho frio de mangueira era o remédio.

Desde pequena acompanhei os mais velhos, vivíamos em consonância com a natureza, reconhecíamos os passarinhos pelo canto.  A vida fluía em liberdade com pouco desejo de consumo, caminhávamos nas lombas de areia e era tão bom senti-la sob os meus pequenos pés descalços! A imaginação aguçava a curiosidade e incentivava a aventura indispensáveis para o processo criativo.

Tempos (não tão distantes) algumas vezes esquecidos, queridos, repartidos, revividos por diferentes infâncias em muitos espaços e tempos. 

Num mundo globalizado como o de hoje, conhecendo a própria cultura, o indivíduo compreenderá a importância de mantê-la viva.  Proteger não significa defender o isolamento ou o fechamento ao diálogo com outras culturas, mas sim encontrar meios de promover a sua própria cultura respeitando a manifestação das demais que, acredito, ao unirmos em rede, podemos construir juntos um futuro mais digno e justo.

Liliana Seroto Rocha Coelho

Colaboradora


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